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Correr na Cidade

Race report Serra D'Arga (2ª parte)

Por Luís Moura:

(podem ler a 1ª parte deste race report aqui)

 

A seguir ao abastecimento dos 25km, onde passei em 108º da geral, veio uma das piores subidas. Não é a mais longa nem a mais inclinada, mas a conjugação das duas provoca muitas dores. São pouco mais de 2km onde subimos quase 400 metros positivos. Custou pela terceira vez subir esta parede, mas por incrível que pareça, devido ao menor peso e a uma melhor preparação, este ano foi muito mais fácil.

 

Não sei se “mais fácil” é a melhor escolha de palavras. Se calhar, menos agreste será o melhor termo. A subida é brutal. No dia anterior tinham feito lá parte do trajeto da prova do km vertical.

 

Depois do impacto da subida, fizemos uns 2km e pouco na horizontal no alto da montanha, antes de entrarmos na terrível descida antes do abastecimento dos 33km. Digo terrível, porque é quase toda em pedra dura misturada com dezenas de pontos de passagem de mini riachos, o que mantém uma boa parte da descida sempre húmida e muito, muito escorregadia.

 

Descemos quase 500 metros e a média foi de 6:40/km... parecia um caracol, mas deu para passar 3 ou 4 corredores, todos dos 33km, que estavam já nos últimos km's da sua prova. E novamente pensei, onde anda a malta dos 53km?

 

33km
Ao entrar na Montaria, onde estava a meta dos corredores dos 33km e o arranque de quem estava a fazer os 20km, tínhamos um abastecimento. Para mim foi muito complicado. A Liliana já lá estava muito ansiosa e foi logo ter comigo quando parei no abastecimento.

 

Terceira surpresa do dia. Num espaço de 30 segundos, passei de estado normal para um estado de pânico. Fui invadido por dores enormes nas pernas, fruto do ritmo louco com que estávamos a fazer a prova. O facto de treinarmos 90% do tempo em Lisboa é muito complicado para que o nosso corpo se habitue a estes ambientes muito mais inóspitos. A dureza da pedra não se consegue treinar em Lisboa e isso nota-se nas pernas.

 

Treinar muito em Monsanto não chega para vir para aqui. Isto é outro nível de kung-fu... Comecei a beber líquidos, comi um pedaço de banana e comecei a ter tonturas e caibras nos gémeos. Sentei, estiquei e comecei a agoniar. Muito!

Tantos meses a treinar e a prova começava a ficar “preta”. Ao fim de 10min, um dos elementos da organização deu-me 2 pedaços de laranja com sal e 5min depois começou a fazer efeito. Estive 15min no abastecimento! Entretanto, já tinham passado uns 40/50 corredores dos 53km e eu ali sentado no chão quase a chorar com a irritação de ver a continuação na prova comprometida.

A Liliana estava a tentar acalmar-me e a ajudar com o apoio constante. Nesta altura passa-nos tudo pela cabeça, o que andamos a fazer? O que não andamos a fazer? Porque estou aqui? Porque que raio me doem as pernas? Não estaria melhor na cama?

 

Com 22min de paragem no abastecimento e já com poucas dores nos gémeos, decidi arrancar. Tinham passado “milhões” de corredores enquanto estive a recuperar, era altura de meter as sapatilhas a mexer. Cheguei no lugar 100º e devo ter saído pelo 160/170º do abastecimento. Arranquei devagarinho, a passo. Mesmo a passo. Fiz quase 1km a pé, devagar, para deixar o corpo reabituar-se a mexer. E tudo parecia duro, muito duro. Doía-me quase tudo, desde os gémeos, quadricípites e costas com o peso da mochila... não estava nos melhores dias. Entretanto a Liliana ficou para trás e foi-se meter no carro para me ir esperar na meta... Quase nem falei com ela quando sai tal o foco em apenas sair dali!

 

Ao fim de uns metros, juntou-se um grupo de 4/6 elementos e andamos ali 2/3km a correr a ritmo ligeiro, a passar no meio de aldeias perdidas em paisagens lindíssimas, e no meio daquelas casas todas, às vezes apareciam casas com relvados grandes e piscinas!

 

Passado pouco começa a descida para as cascatas do rio Ancora. A parte mais fantástica da prova. Foram cerca de 4km quase sempre a descer onde recuperei a maior parte do entusiasmo e do bem-estar.

 

Já conseguia rolar relativamente bem. Já estava com gosto pelo que estava a fazer. Entretanto passei 3 ou 4 corredores que também já estavam em dificuldades. Inicio dos quase 4km sempre a subir ao lado do rio, com varias passagens pela água e pelas margens, e novamente os pés molhados. Como sempre. Abrandei ligeiramente e decidi gerir melhor o esforço aqui, com muitas pequenas subidas de 10/30 metros de lama, muito difíceis de colocar os pés. E sem nos apercebermos, começamos a subir, e a subir. Penúltima subida, a mais pequena da prova, onde "apenas" subíamos até aos 450 metros de altura, mas já com muita pedra novamente no final. Até escalada durante uns metros tivemos que fazer.

 

E depois começou a descida para o abastecimento dos 43km, ou 45km conforme os gps's que íamos vendo. Uma descida de +/- 1,5km de pedra, e pedra e pedra.

 

Cheguei ao abastecimento, e o corpo já estava quase normal. Sem dores agudas e já me encontrava bem disposto. Fiquei lá 5min a beber líquidos e a comer mais letria da mulher do Carlos Sá, e alguma fruta. Entretanto, passou o Rui Pedro Julião e segui na calçada dele.

 

Cheguei em 146º da geral e sai acima dos 150º. Tínhamos mais 10km para fazer e uma última subida com quase 4km e 400 metros de subida. Formei um grupo com mais 3 corredores e lá fomos subindo devagarinho. Sem correr, mas sempre numa passada rápida. E fomos passando alguns corredores que já iam com dificuldades.

 

Por esta altura também já se sentia algum calor forte, estávamos numa vertente da montanha virada diretamente para o sol e ele bem que nos tentava derrotar com os seus abraços quentes. Muita água se bebeu ali. Mas o ritmo estava constante e a vontade já era inquebrável. Sempre em frente!

 

Como fui gerindo a prova melhor nos últimos km's, já me ia a sentir bem novamente e cheio de energia para ir até ao fim. A 1,5km's do início da descida final, eis que encontramos a "pequena" subida que todos os anos o Carlos Sá gosta de nos presentear.

 

São apenas 300 metros, mas subimos uns 90 metros quase de gatas. Não sei porque custa tanto! No topo da micro subida, e com toda a gestão de energia que fiz nos últimos 15km, arranquei e deixei para trás os 3 colegas. Sentia-me sem dores grandes, sem muito calor, alegre e de bem novamente comigo mesmo, e já com o relógio a passar das 7 horas de prova. Tinha "prometido" como meta ficar abaixo das 8 horas de prova, e estava a começar a ficar complicado devido aos problemas com o estômago e as dores nos gémeos.

Cerrei dentes e meti a quinta. A partir dali foi sempre no redline.

 

Início da descida final
3km e pouco sempre a descer, com muita pedra, lama e piso escorregadio... muito escorregadio. Fiz os primeiros 2km a uma média de 7:40 e passei por uns 5 ou 6 corredores. Caras pálidas e tornozelos empenados ali não faltavam, mas a resiliência humana é tramada... Mesmo a 7:40 por km, parecia uma velocidade louca para a aderência que os Salomon que tinha calçados dão em piso molhado.

 

O terceiro e último km na montanha foi feito a 5:20, já com uma boa parte a rolar em piso de estrada.

 

Meta

Cheguei ao ultimo troço. Cerca de 500 metros já dentro da vila, em alcatrão bom e sempre a descer. O GPS marca média de 3:42 por km naquele troço e realmente parecia que ia depressa. Só queria acabar o sofrimento das pernas. Só queria chegar ao fim. Só queria chegar dentro das 8 horas.

 

Só queria ver a Liliana que devia estar a sofrer tanto como eu. A ansiedade era muita. Dei um berro na entrada do troço e liguei o modo "meia-maratona". Nem me apercebi do peso da mochila ou de qualquer outra coisa. O focus estava na meta.

 

E uns 450 metros depois lá aparecia ela lá ao fundo, depois da curva. Vi um tapete vermelho antes da meta e a meio a Liliana a gravar a chegada. Veio uma lágrima ao canto do olho quando entrei no tapete, depois de tantas tropelias durante a prova, o esforço era tão grande que desapareceu tão depressa quanto apareceu.

 

Passei a meta. Parei, olhei em volta uns segundos. Deram-me o prémio de finisher, o colete habitual, este ano em cor vermelha.

 

Estava a ver que ia ser difícil. Posição final 137º. Dava perfeitamente para chegar em 100/110. Fica para o próximo ano!

 

Em termos mentais foi das minhas provas mais difíceis, senão a mais difícil. Já tinha desistido em outras provas por considerar que no estado em que estava não valia a pena colocar o meu corpo em risco.

 

Desta vez foi diferente. Passar de bestial a coxo ferido e depois novamente a bestial, foi complicado. Gerir as emoções e os sentimentos não é fácil. As tonturas e a sensação de quase vomitar no abastecimento dos 33km foram avassaladoras.

 

Levantar e andar foi difícil mas sempre com o objetivo bem definido e traçado para este domingo. A meta era a única saída dali. Como costumo dizer nos treinos, em alguns sítios foi "suck it up" e toca a mexer. Muito bem aplicada nesta prova! Depois descansa-se.

Como nota final gostaria de agradecer à Liliana por todo o apoio que deu, antes da prova, durante a prova e no final. Faz uma diferença brutal ter uma namorada que nos entende, que percebe por aquilo que estamos a passar e todos os sacrifícios que temos que fazer para chegar a determinados objetivos. És grande companheira!

 

Um segundo obrigado ao Bruno Miguel pelo apoio no abastecimento dos 33km. É sempre importante o apoio que sentimos no Trail comparativamente ao que vemos no alcatrão.

 

Por fim, dar os parabéns aos meus colegas de equipa, o Stefan Pequito ficou em 21º da geral com 06:17h! O miúdo tem potencial para andar muito depressa e com calma vai lá chegar, e ao Pedro Luiz que em modo "rolar", ficou em 258º da geral com 09:10h. Muito bom para quem estava a fazer a primeira prova depois do recover.

Para fechar, os meus parabéns à organização do evento, é das melhores que temos no país. Tem um ou outro pormenor que pode ser afinado, mas no geral é super bem organizada e quase tudo encaixa como um relógio suiço. Não é de estranhar que toda a gente queira lá regressar.

 

Os meus parabéns a todos os malucos que se propõem a fazer estas provas e a baterem os seus próprios medos e receios. É sempre bom ultrapassar o que pensamos ser difícil.

 

FIM

 

 

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