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Correr na Cidade

Race Report: 100km São Mamede - o aparecimento da Rabdomiolise


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Por Luís Moura:

 

03:30 - PAC 3 ao 4

Poucas dezenas de metros depois de sair do abastecimento o GPS avisa que passaram 30 km e começam cerca de 9 km sempre a descer.

A partir daqui entrei num território desconhecido visto que no ano passado só cheguei ao PAC3.

Depois das subidas íngremes e vento forte, agora tínhamos semi-estradão com muitos detritos no chão, principalmente pedras relativamente grandes e soltas... e vento. Raio do vento nocturno que nos manteve fresquinhos :)

Uma coisa que ainda não mencionei e acho de todo justo fazer. A qualidade geral que se respira neste evento é de facto de muito alto nível. Desde a simpatia dos voluntários, às marcações quase irrepreensíveis, abastecimentos quase todos fartos e cheios de pessoas, etc., é de facto uma festa aquilo que se sente neste fim-de-semana.

 

Apesar dos calhaus no meio do caminho, eu e mais uns quantos que seguiam à minha frente adoptamos um ritmo mais vivo. Primeiros 2 km com 200D- e média de 5:40/km. Não era muito depressa, mas estava um pouco perigoso com aquele vento e as pedras que apareciam quase do nada debaixo dos pés.

Do km 32 ao 35, foi um serpentear mais suave, com médias de 5:50/km e 20/30D- por cada km. Era um troço muito engraçado de fazer e de dia deveria ter paisagens lindas para se ver. Apanhamos muitos ramos de arvores baixas e arbustos chatos pelo caminho o que me valeu uns quantos arranhões nas pernas. De vez em quando nos escondíamos do vento. Outras vezes nem por isso. Devo ter passado meia dúzia de atletas nesta longa descida até ao rio lá abaixo antes do PAC.

 

Chega o km 37, e lembrei-me do que a Liliana me tinha dito no PAC3 "cuidado com esta ultima descida no fim do troço que parece ser muito íngreme". À medida que me aproximei do fim da descida, a inclinação aumentou e ficou perigoso, existindo pontos de 24 ou 26% de inclinação e ai corria muito mais devagar para evitar escorregar. Mas a cereja estava para vir uns metros á frente, quando a parte final antes do PAC foi feito numa mata com arvores e inclinações muito, muito fortes, onde mais fácil seria fazer "sku" a descer. Acima dos 40% de inclinação em alguns pontos. Média a descer aqui chegou perto dos 11/km!!! Depois de passar esta zona complicada, passagem por um pequeno rio onde ficamos todos molhados até aos tornozelos (eram 4:20 da manha).

 

Tinha previsto chegar aqui com 4:30 e estava uns minutos à frente do tempo. As pernas estavam a chorar um bocado na área dos gémeos deste esforço de correr nas pedras. Mas o pior era o estômago. Vinha a beber sempre 1L/por hora de prova mas comida era pouca. O estômago estava a dizer que algo estava mal. Sentia-me farto, mal disposto. Como se tivesse acabado de comer um frango inteiro. A Liliana não gostou da minha cara e eu disse-lhe que fisicamente estava bem mas o estômago não estava a cooperar.

 

Bebi copo de café e banana com sal. Tentei comer comida sólida e mal ia a pegar nela, desisti da ideia. O corpo parecia que dava sinais de não querer comer nada. Esperei uns 3 ou 4 min a respirar e deixar o corpo acalmar mas tinha os pés completamente encharcados. Por esta altura chega ao abastecimento o Rui Pedro Julião e o Serrano logo a seguir. O Rui arranca pouco depois e quando o Serrano arranca com o Tiago Rovisco, sigo com eles. A Liliana pedia-me para eu comer, mas não conseguia. Coloquei um barra de proteína no bolso dos calções e fui na esperança de a comer a meio do troço antes de chegar ao PAC 5.

 

 

04:40 - PAC 4 ao 5

Os próximos 10km tinham 525D+, sendo os primeiros 5km SEMPRE a subir e os restantes 5km quase sempre a descer. Como estava um pouco mal disposto do estômago e estava com bom ritmo, ainda dentro da minha expectativa para as 13H finais, arranquei do PAC a ritmo lento. Alguns subiam a passo rápido, outros em trote ligeiro e eu deixei-me ir a passo mais lento. Enquanto fui comendo um pedaço de banana, devo ter sido ultrapassado por 30 ou 40 no primeiro km. Mantive uma passada suave a ver se melhorava nos 2km seguintes, onde fiz médias de 13/km e com uma subida de mais de 200D+.

 

Por esta altura mais 30 ou 40 passaram por mim. Estava a tentar proteger-me para mais tarde ter forças. De seguida vem 2km mais suaves nas subidas ( apenas 100D+ ! ) e acelerei um bocado o passo. Comecei a andar em passo acelerado a tentar aquecer novamente as pernas e preparar a corrida para depois.

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Aos 43km, 945 metros de altitude e cerca das 5:25 da manha começa a aparecer o sol. Já estávamos com alguma luminosidade há uns bons minutos, mas agora ali estava ali a despertar na sua plenitude. Por esta altura estávamos uns metros dentro de Espanha !, em plena serra.

  

Alguns pararam uns segundos para admirar aquela espectáculo de luz e sossego. Outros tiraram fotos ou selfies. Apanhamos umas boas centenas de metros no planalto lá acima e comecei a correr suavemente. Deixei o corpo recomeçar a gostar e aquecer. Por esta altura já não estava com as luvas calçadas do frio. A temperatura começou a subir ligeiramente, para além que estávamos relativamente bem abrigados do vento que vinha de OESTE. O sol a bater ao de leve na cara ajudou muito no aumento de motivação. Os 2 primeiros km a descer deram 200D- e média de 6:24/km. O corpo estava a retomar o gosto por correr. Não sentia sede nem fome. Fui bebendo normalmente mas não ia comendo nada. Continuamos em estradões, mas agora protegidos por floresta diversa, alguma caruma e muitas pinhas. Parecia a zona de Angeiras no verão :)

 

Comecei a sorrir internamente novamente, tinha o corpo quente e pronto a correr. Fez bem aqueles km a descansar um bocado. Os 2km seguintes ainda ligeiramente a descer a dar média 6/km. De repente, numa pequena descida, demos com um cruzamento de duas ruas e era o abastecimento de Porto de Espada, quase em cima do km49, ligeiramente antes do esperado.

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Cheguei com 6:05h de prova, cerca de 15/20min acima do que tinha previsto. Era os 30min que perdi a andar nos primeiros km do troço que provocam que passasse de 10min abaixo para 20min acima. Apesar de estar a andar mais devagar, estava tudo dentro do que tínhamos planeado. Plano A, B e C. O plano A era seguir para as 13H e até este ponto ainda bem ao alcance. Se começasse a escorregar, teríamos que ir para o plano B.

 

Lá estava a Liliana a sorrir para mim. Fez-me tão bem à alma encontra-la ali. Estava com um pouco de sede e bebi. Comi um pouco de banana e um pedaço de bolo de chocolate. Quando comecei a comer o bolo, peguei numa bifana quentinha e acabadinha de fazer. Não gostei da sensação.

  

Continuei a comer o bolo. E olhei para a bifana. Disse á Liliana para dar uma dentada que também devia estar com fome. Sentei-me num banco que tinha lá para os atletas durante 2 ou 3min e acabei o bolo. Quando cheguei ao fim, o meu estômago parecia cheio que nem uma bola. Não percebi o porque nem me apercebi que a coisa estava bera. Comi mais banana com sal, coloquei o cantil cheio com magnesona e arranquei. Vinham ai mais 11km com 535D+ e a subida difícil para o Castelo do Marvão. A magnesona estava a fazer um bom trabalho, juntamente com o sal. Não estava a sentir cãibras fortes, apenas uma ou outra dor pequena durante uns minutos e de resto as pernas e o corpo estavam óptimos. O estômago é que estava mal. Que desconforto !!!

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Arranquei suavemente, sabendo que tinha uma ligeira subida no inicio do troço, depois uns km's a descer até +/- meio e depois iniciar a subida e o assalto ao castelo! Antes do arranque tirei parte da roupa quente que levava como peso extra e troquei o buff e frontal pelo chapéu. Fiquei mais fresco. Mas comecei a pensar logo no Marvão mudar a roupa do tronco.

 

 

06:10 - PAC 5 ao 6

O início foi calmo para deixar a pouca comida assentar na barriga. O sol começava a aquecer o ar e sentia alegria e paz no ar. Entramos pelo bosque dentro e seguimos por mais uns km até iniciarmos a descida por mais estradões sempre a serpentear as serras. Do km51 ao km55, quase sempre a descer ( 280D- ), deu para soltar as pernas. Ritmos de 6/km, calmamente e sem exagerar, pois se as pernas estavam super bem, estava um pouco preocupado com o estomago e com o facto de estar a comer pouco. Mas o corpo não dava sinais de fome. Nenhum. Toda a comida que meti foi empurrada, sem ele pedir.

 

Ás 6:45, final do km54 e inicio do 55, batemos na parte mais baixa da corrida nesta zona e chegamos aos 490metros de altitude, onde passamos um rio pequeno. E novamente ficámos com os pés completamente encharcados. Até nem soube mal aos pés que estavam com 2h de calor em cima, mas as sapatilhas não gostaram muito. Ficaram todas sujas e pesadas.

 

As Adidas Raven 3 que uso desde o verão passado chegaram até aqui já cansadas e com desgaste. Já tinham mais de 600km de pancada forte e feio e já dão indícios de pedir reforma. A sola ainda está para mais uns quilómetros, mas a parte superior frontal e a estrutura de suporte já estão quase rebentados dos lados. Tenho que pensar numas sapatilhas para substituir estas companheiras de guerra que tantos km fizeram comigo e que se revelarem uma grande surpresa pela positiva. Mas neste momento eram a melhor opção para esta prova. As meias da Lurbel também se estavam a portar 5 estrelas até aqui, com o frio nocturno a ser completamente inconsequente, tendo elas conseguido manter os pés quentes q.b., sem nunca os sentir desconfortáveis.

 

De seguida 1km ligeiramente a subir por uma nacional de alcatrão até entrarmos à direita em trilhos com dificuldade média. Com o castelo a pairar lá no alto, começamos a sentir o cheiro do suor para o subir. Aumentei um pouco o ritmo e apanhei 3 ou 4 atletas que iam mais à frente. Depois de ter sido passado por mais de 100 atletas na saída do PAC4, já tinha recuperado cerca de 1/3 dessas posições até aqui, mas não queria abusar no ritmo nesta altura. Sentindo o estômago como estava, só queria chegar bem a Castelo de Vide, descansar um pouco e depois acelerar um pouco nos últimos 22km. Bem, pensar neste plano parecia bem na altura. Por enquanto, as 14H ainda estavam bem dentro do alcance. Plano B.

 

Entretanto começa a subida mais forte para o Castelo, pelo meio de casas e em estradas muito íngremes de pedra dura. Foram quase 2km com pouco mais de 150D+. O sol começa a ameaçar com calor e tivemos que nos colocar a mexer. Pensávamos que íamos passar perto do castelo, mas não estávamos a contar com a voltinha extra do carrossel. Quanto estávamos a cerca de 200metros do topo, as fitas do percurso apontam para a direita e para baixo. E lá fomos nós dar uma volta pela lateral do castelo, descendo por uma calçada muito mal tratada e com muitas hipóteses de entorses ou pior.

 

A inclinação não era pronunciada, mas a progressão devido ao piso era mais lenta. Optamos por seguir em ritmo mais calmo e lá fomos num grupo de 4 dar a voltinha. Ao km59, o GPS indicava que estávamos a 700m de altitude, e o castelo estaria pelos 820m.... mau... e depois de umas centenas de metros num bosque muito cerrado, protegidos do sol no meio de tanta vegetação verde e intensa, lá entramos num descampado, por onde iríamos subir a pique e ao sol até chegar à muralha do castelo. Foram cerca de 120D+ em menos de 1km.

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 ( foi sempre a direito por lá acima )

 

Doeu um bocado a nível de corpo, mas confesso que me senti bastante surpreendido com as pernas. Nem um pio nem um ai de cãibras ou dores parvas. Senti-me fisicamente bem e os treinos estavam a dar resultado. Poucos metros à frente entramos no castelo numa das portas de fuga e iniciamos o curto percurso por dentro do castelo até ao abastecimento. Quando cheguei, já lá estava a Liliana com um sorrisinho na cara e rodeada por dezenas de atletas. Eram os que iam partir às 9 da manha para os 42km até Portalegre.

 

Cheguei aqui às 8:20 da manha, pouco acima de 30min do que tinha planeado. Óptimo tendo em conta os muitos km que caminhei até ali. Sentia-me bem psicologicamente e fisicamente. Comi banana e laranja e troquei o cantil por outro com isotónico. Esta excitação com mistura de entusiasmo talvez não me tenha deixado aperceber que o estômago continuava a não comer nada sólido. Não me sentia fraco nem com fome, mas eufórico por estar ali aos 60km e a me sentir muito bem fisicamente.

 

Dei um beijo à Liliana e disse até já. Arranquei sozinho porque os meus companheiros da subida tinham ficado no abastecimento a mudar de sapatilhas e roupa. Quando sai de Marvão pensei logo em trocar de roupa no próximo PAC em Carreiras e depois de sapatilhas em Castelo de Vide. As Reebok são muito mais frágeis que as Raven, mas são muito confortáveis e leves. Seriam uma boa aposta para os últimos 20km mais "suaves". Assim estava a ser executado o plano B.

 

08:20 - PAC 6 ao 7

Por esta altura já o sol estava um pouco forte. Ainda nada perto dos 35º a que chegou no início da tarde, mas muito forte para esta hora da manhã. No arranque do Marvão foram cerca de 3km sempre a descer pela velha calçada romana. E dizer velha é ser simpático, uma vez que o piso está quase todo destruído e é um suplício correr por ali abaixo, principalmente quem já vinha com 60km em cima.

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6:14, 6:19 e 6:22/km foi o registo dos 3km a descer. Parecia um relógio suíço. Ainda tive a companhia do Luís Trindade durante uns minutos, mas ele depois seguiu um pouco mais rápido. Depois da descida, entramos na vila de Portagem e o km seguinte foi feito junto a um rio que foi adaptado com sistemas de comportas para criar piscinas artificiais para o verão. Fantástico. Logo a seguir entramos num pequeno bosque e consegui correr um bocado. Pouco metros à frente, ainda debaixo de sombra e sem levar com o calor, abrandei um bocado.

 

Seguia a pé a passo simples. Não sei porque o corpo começou a dizer que tinha que parar. Estava com a luz do depósito de gasóleo a piscar. Entretanto saindo do nada, aparece o Miguel Baptista a correr.

- "Que é que andas aqui a fazer?"

- "Desisti aos 30 nas Antenas e depois vim de carro até aos 60 no Marvão e agora vou fazer um treininho até C.Vide"...

Valente...

 

Disse logo a ele que não ia correr muito nos próximos tempos, que estava a tentar recuperar fôlego, e se quisesse seguir no treino dele, para ir andando. Decidiu ir comigo e lá fomos caminhando às vezes e outras correndo um bocado em alcatrão. No km66, começa a subida para a Serra antes do abastecimento, que eram os 300D+ que esta etapa tinha. O piso não era muito complicado, era um estradão apertado com alguns rasgões no chão dos rios da chuva de inverno e muito calhau pequeno.

-"Miguel, vou fazer isto tudo a andar que estou-me a sentir cansado"

-"Tudo bem, vamos indo devagar. Temos tempo. Daqui a pouco estão ai a chegar os primeiros dos 42Km"

-"ahaha... a mim só me apanham do outro lado da serra"

 

E lá começamos a subir. Primeiro km com 91D+ a 11/km. O sol começou a fazer das dele. E comecei a beber agua com mais intensidade. Comecei a fazer contas de cabeça e calculei que o abastecimento seria por volta dos 71km, o que fazia faltar 5, ainda mais 2km a subir e depois 3km a descer. Ui que ia custar tanto. Não sentia dor absolutamente nenhuma. Corpo estava impecável, sempre disponível a mexer e a fazer força. As reservas de energia é que estavam muito, muito baixas. Comecei a sentir o corpo a querer parar, a dizer que já chegava. Que o melhor seria parar ali. Mas não o podia fazer no meio daquele sol forte e seco, teria que seguir até pelo menos uma sombra ou ao PAC seguinte.

 

- "Miguel, falta muito?"... "É já ali", dizia ele com aquela resposta tipicamente alentejana de que tudo é já ali a seguir.

 

Segundo km com 140D+ e um sol que já começava a torrar. Por esta altura já eram 9 e muito da manha. Os primeiros dos 42km deviam vir mesmo quase atrás de nós. Ainda olhamos algumas vezes para trás para ver se eles lá vinham, mas nada.

 

Mais uns metros a subir e começou a ficar mesmo muito difícil. Mais uma golada de agua e continuar. Quando cheguei ao topo da subida, quase 3,5km a subir tinha decorrido pouco mais de 42min !!! Aqui já quase que me arrastava, já sabia que a prova poderia estar comprometida, mas o mais importante era conseguir chegar ao próximo PAC e descansar um bom bocado. Depois via-se se dava para continuar ou não. Ainda tínhamos forças para ir fazendo algumas piadas. Serviam para aliviar a cabeça e retirar do pensamento o sofrimento.

 

E passa por nós o primeiro classificado dos 42km, fresco que nem uma alface. Trazia 8km de prova e com bom ritmo. Espreitamos para ver quem o seguia. Ninguém.

 

Entretanto na subida passaram 4 ou 5 elementos dos 100km, todos a ritmo tranquilo.

E começa a descida. YUPI... Entramos numa descida rodeada de muitas arvores e sombras…

-"Anda Luís, vamos correr um bocadinho".... "lol, right".... nem tinha forças para me rir quanto mais correr.

- "Miguel, vai indo senão estás a apanhar uma seca monumental"... Dizia eu em modo ultra-caminhante.

 

E lá fomos a passo de caracol a descer. Entretanto passa o Luís Mota, segundo classificado naquela altura dos 42km com cerca de 4min de atraso, e pouco tempo depois o terceiro e quarto. E lá fomos descendo devagar. Devia falta cerca de 1km para o abastecimento porque via-se as casas pelos buracos das árvores. Por esta altura, a cada 10 metros apetecia-me sentar no chão. Mas tinha que continuar até ao PAC. Mais um gole de agua e mais 2 pontapés em pedras. Raios, que elas aqui são grandes e altas. Não eram, eu é que já quase não levantava a ponta dos pés. Mais uns metros e vimos umas casas mais abaixo. É o abastecimento?!? Não era, era uma espécie de casebre com pequeno anexo para armazenamento. Por esta altura já muito mais elementos dos 42km passavam por nós a bom ritmo.

 

Depois de uma curva para a esquerda, parei debaixo de umas arvores à sombrinha, numa zona do percurso que tinha uma boa largura para não estar em cima do percurso e para não incomodar os outros aventureiros. Tirei a mochila, deitei-a no chão e lentamente sentei-me no chão. Logo de seguida deitei-me com a cabeça em cima dela para ficar ligeiramente mais alta que o corpo. Já não aguentava mais. Tanto treino de força e de escadas e o corpo não tinha mais energia. Acabou-se o gasóleo.

 

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09:50 - lipotímia

Miguel perguntou se estava bem e respondi que só queria descansar uns minutos. Fazes bem, responde ele. E entretanto começou a debitar a cassete de resposta a quem ia passando "ele está bem, apenas está a descansar", quando todos perguntavam se estava tudo bem e se era preciso alguma coisa. Por esta altura nem os olhos conseguia manter aberto. Comecei a acalmar o cérebro, comecei a focar-me na respiração e tentei descer o consumo de energia do corpo para tentar recarregar alguma coisa antes de tentar chegar ao PAC7, que estaria a cerca de 1km.

 

Sentia a boca ligeiramente seca mas não sentia sede nem fome. Apenas me sentia cansado. Cansado e com vontade de dormir.

 

Ao fim de cerca de 4horas, estou a brincar, foram para ai 5min mas pareceram 4horas, fiz o que qualquer pessoa sã e consciente faria. Fiz stop no GPS e conclui a gravação da prova. Já estava a pensar que melhor seria mesmo parar ali e deixar o resto do percurso para outro dia. No fundo ainda estava com uma esperança de ter um pouco de energia e no PAC7 beber uma bateria de energia que me permitisse continuar a prova.

 

Ao fim de 10min, essa ideia saiu-me da mente. Ou se calhar já tinha saído da mente desde a subida, mas a resiliência em tentar acabar o que comecei, e o fantasma da desistência do ano passado regressou em força. Nem sequer tinha forças para ficar triste ou com raiva sobre esse pensamento. Só estava preocupado em relaxar e respirar calmamente. Apesar de termos descido durante mais de 1,5km, ainda estávamos perto dos 700metros de altitude, o que diminuía ligeiramente a concentração de oxigénio para respirar.

 

E os atletas dos 100 e dos 42km não paravam de passar por nós e quase todos a perguntar se estava tudo bem ou se era preciso algum gel ou isotónico.

"É melhor ligar à Liliana para ela não ficar preocupada por não chegar"... "É melhor".

Miguel pegou no meu telemóvel e ligou para ela. Primeira vez deu falta de sinal de rede do lado dela. E esperamos um pouco.

Vi o Arede e outros elementos dos esquilos a passar, vi mais caras conhecidas, mas só me apetecia dormir maravilhosamente debaixo daquelas árvores lindas e ao fresco.

 

Pouco depois, cerca de 15min depois de me sentar, o Miguel ligou para a organização a dizer onde estávamos e a indicar que o melhor era enviarem uma equipa médica. Entretanto, continuava a passar conhecidos e desconhecidos. Permaneci com os olhos fechados para descansar o melhor possível, mas reconhecia algumas vozes e ouvi muito do que disseram.

 

"Eu viu no abastecimento no Marvão e parecia ir tão bem"..."É o Luis do Correr na Cidade"...

 

Lembro-me do Filipe Torres falar comigo a perguntar se estava bem. Penso que lhe respondi que sim. Ficou 1 ou 2 minutos ao meu lado. Não me lembro de mais nada nesses minutos.

 

Pouco depois o telemóvel toca. Era a Liliana. O Miguel explica-lhe a situação e poucos minutos depois já estava junto a nós. Dá-me miminhos, passa-me a mão pela cara várias vezes e repetia diversas vezes "não durmas!!!"... Entretanto deram-me um pouco de água. Eu sentia-me bem. Não me doía nada no corpo. Apenas tinha ficado sem qualquer energia...

 

Só queria era descansar um bocado.

 

Num flash de consciência, e cavalgando à velocidade de um trem desgovernado, enquanto a Liliana me segurava a mão e dava-me conforto, vem-me à cabeça o pensamento "vais desistir da prova". Esse pensamento só por si quando justificado não me iria provocar grandes problemas. Já desisti de 3 provas e em todas elas com lições de aprendizagem e justificadas. Mas neste caso, a velocidade e a violência com que o pensamento chegou foi tanta, que comecei a chorar. Ou pelo menos tentei chorar. Não conseguia chorar direito, pois nem para isso tinha forças.

E foi aqui que apercebi que saltei da barca da Graça para a barca do inferno.

 

Pensava em todos os meses que treinei para chegar ali. Pensei em todas as horas que passei para segundo plano tanta coisa importante para estar ali.Pensei em todo o esforço que a Liliana também estava a fazer para me dar segurança e animo durante a noite toda. Pensei que novamente os 100km de Portalegre me tinham ganho. Nos minutos seguintes foi uma enxurrada de pensamentos que saltavam pelo meu cérebro à velocidade da luz. E não consegui chorar direito. Não conseguia. Não tinha forças. Apercebi-me que a Liliana também ficou de olhos molhados mas não queria mostrar fraqueza e continuou a falar comigo.

 

Só queria dormir e descansar um bocado.

 

Muita coisa se passou até chegar o INEM. Não me lembro de tudo e nem sei se quero. Aliás, a sequência que descrevi em cima pode ser ligeiramente diferente do que se passou, pois nesses "longos" minutos que esperamos pela ajuda que para mim pareceu uma eternidade, muita coisa ainda está confusa na cabeça. Como foi gravado no cérebro num momento confuso, algumas das coisas lembro-me vagamente e outras é muito confuso. Mas a quantidade de pessoas que parou e mostrou-se disponível para prestar auxílio em prol da sua prova foi gigantesca.

 

O meu muito sincero e sentido obrigado.

Fizeram 2 ou 3 testes rápidos para testar o açúcar no sangue e a tensão. Mediram o pulso. Estava tudo bem menos a glicémia que estava abaixo de 50, sendo normal estar quase acima do dobro... Colocaram-me logo a soro e transportaram-me para o PAC7 no jipe que me foi buscar. Aí fui mudado para uma ambulância que me levou ao hospital de Portalegre. Lembro-me de todo o trajecto, desde a colocação no jipe, a mudança para a ambulância e a entrada no hospital. Mantinha os meus olhos fechados quase o tempo todo para poupar energia, mas de vez em quando abria e via o que se passava à minha volta.

 

Quando entrei no hospital, fui colocado na triagem e em poucos minutos já estava na zona das urgências a fazer testes. Lembro de começar novamente a chorar, desta vez acho que um pouco mais forte por já estar um pouco melhor e de me sentir completamente um inútil ali deitado sem forças. Todo o esforço de meses e meses de preparação deitada fora. Faz parte da vida estas coisas, mas quando estamos a quente não compreendemos e perguntamos o porque... Porque raio o estômago não ajudou? Estava tudo a correr tão bem e conforme planeado.

 

O meu agradecimento à equipa do INEM que rapidamente me socorreu no local. Foram inexcedíveis e sempre super simpáticos e empáticos com a situação.

Em sentido inverso, a enfermeira/médica que me atendeu disse no meio de muita baboseira retórica "vem esta malta fazer provas destas sem preparação para isto"... Mesmo que fosse verdade esta diarreia mental, não é o que uma pessoa que está a entrar nas urgências quer ouvir. Isso fica para o sermão mais tarde. Se for caso disso.

 

Não vou relatar aqui as 27horas que estive no hospital, desde as 11:30 da manha de Sábado até ás 14h de Domingo. Muita coisa se passou, algumas interessantes e outras absurdas que assisti. Só os absurdos que me fizeram passar e que vi a fazerem a pessoas idosas ao longo da longaaaaa noite dava um post de 5000 palavras.

Vou dizer que fui bem atendido em termos clínicos e só me deixaram sair quando tiveram a certeza que o corpo estava a recuperar bem e com forças.

 

O meu obrigado ao corpo médico por me terem recuperado e por se preocuparem comigo...

 

 

Veredito médico

O que me levou ao hospital foi a lipotímia mas foi a rabdomiólise por esforço que fiquei internado tanto tempo. Basicamente o corpo foi sujeito a um esforço enorme e isso normalmente tem consequências. Leiam sobre o tema que nos ajuda a perceber algumas coisas.

 

2016 e o assalto a Portalegre

Fica um gosto amargo na boca. Depois de tanto esforço, tanto planeamento e a saber que tinha mais do que capacidades físicas e psicológicas para realizar a prova no tempo que me tinha proposto, o que se passou deixa-me com alguma tristeza. Mas como tristeza não paga dividas, o episódio já não faz parte do meu pensamento. Aprendendo o que tive que aprender com esta aventura, apercebendo-me do que posso melhorar para as próximas provas, não tenho duvidas que em 2016 vou regressar e com ainda mais força do que este ano.

 

No próximo ano vai ser para levantar pedra. É esse o drive que sinto. É essa a motivação que me faz treinar com tanto empenho e prazer naquilo que faço. A prova para mim e para muitas das pessoas com quem convivo nos últimos 2 anos mais de perto e que fez a prova, é de nota 5 estrelas. São poucas as falhas que se pode apontar e qualidade geral com que nos brindam é fabulosa. Os trilhos, a paisagem, a dificuldade acho que estão equilibrados para esta prova. Não é preciso mais km nem mais dificuldade. O UTSM é isto e vai ser um prazer regressar em 2016 para a vingança da Rabdomiolise.

 

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( folha do planeamento do PAC6 ao 7 ) 

 

 

Material e preparação

A preparação e o material para uma empreitada deste tamanho é sempre algo a pensar bem. Se no ano passado tinha material mais fraco e a preparação de estudo da prova foi mais fraca, este ano as coisas mudaram e posso dizer que tinha todas as condições para sair bem.

 

As sapatilhas Raven 3 estão velhinhas mas são excelentes para este terreno, as meias da Lurbel foram excelentes a manter os pés quente de noite e não cheguei a testar as meias que ia usar durante o dia a partir de C.Vide. Os meus calções da Compressport são o meu fiel amigo dos trails longos. Sinto-me completamente sossegado e não tenho grandes maleitas com a ajuda que eles dão em agarrar os quadríceps.

 

A tshirt que recebi da Lurbel para testar é de facto fantástica em determinadas situações. O meu corpo durante a noite esteve sempre quente. Impressionante. E nem uma pinga de suor dentro. Muito, muito boa.

 

O frontal H7R.2, no seu primeiro teste mais a sério pois até agora apenas tinha treinado em Sintra com ele durante algumas horas, foi brutal. Leve, robusto e com luz qb. nem a metade cheguei a usar da potencia, mesmo nos sítios muito escuros e onde seguia sozinho.

 

A mochila.... Minha companheira quase desde o primeiro dia de trails. Está velhinha, o modelo quando comparado com estes mais recentes já está completamente desactualizado, é um pouco desconfortável mas faz muito bem o seu trabalho. É robusta e nunca me deixou ficar mal. Vou começar a pensar na sua substituição nos próximos meses mas com muita pena minha. Passou tanto comigo nestes últimos 3 anos. Cresceu comigo e suportou muito dos meus empenos. Está a precisar de uma reforma para descansar :)

 

Como nota final, e como levou no capacete no inicio do post, deixo aqui os parabéns ao Manuel Abrantes pelo magnifico primeiro lugar nos SUB23M nos 25km. Para quem fez a quarta prova de trail e começou nestas andanças há poucos meses, tem imenso potencial e muita vontade de progressão. Vai com calma miúdo que com tempo chegamos lá. Trabalho, dedicação e paciência.

 

Agradecer ao Miguel a paciência e o espírito de ajuda que teve. Ele pressentiu que algo não estava bem e ficou comigo o tempo todo. E eu fiquei com a manta térmica dele :)

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( Miguel Batista e o Manuel Abrantes depois de receber o prémio de 1ªlugar escalão ) 

 

Por último, e o mais importante, um grande beijo para a minha companheira de alegrias e sofrimento. A minha ajuda e o meu alicerce nestas horas intermináveis de treino e provas. Sem a presença dela nos PAC no Sábado passado a prova teria sido muito mais difícil. Só a presença dela já dá um boost de motivação e alegria enormes.

Obrigado por tudo!

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Primeira parte do relato.

2 comentários

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    Luis Moura

    22.05.15

    Obrigado pelo apoio.

    É exatamente isso que sinto e agora é seguir em frente.
    Levantar, treinar e fazer aquilo que gosto.
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